Partindo do princípio
que o leitor do presente artigo seja conhecedor da condução
coercitiva do caso Lula, passados quase dois anos do ocorrido, manifesto
meu posicionamento sobre tal fato por ainda me surpreender com a fundamentação
da decisão que autorizou tal condução.
De pronto, quero
deixar claro que o presente texto não significa apoio político a quem quer que
seja, tampouco quero insinuar que o juiz Sergio Moro agiu ou deixou de agir de
forma política. A abordagem é meramente jurídica, simples assim.
Sobre condução coercitiva
de acusados, o Código de Processo Penal, no seu art. 260, aduz que:
Art. 260. Se
o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento
ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à
sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução,
os requisitos mencionados no art. 352, no que lhe for aplicável.
Pois bem, o caput do artigo 260 do CPP estabelece
uma condicionante para que a autoridade possa mandar conduzir o acusado (ou
investigado) à sua presença, qual seja, se
o acusado não atender à intimação para o interrogatório.
A regra é cristalina:
para que se conduza alguém de forma coercitiva, a pessoa deve dar causa, ou
melhor, ela precisaria descumprir uma primeira intimação para, somente depois,
caso haja necessidade, ser conduzida sob vara, de forma coercitiva, e um juiz
com o currículo de Sérgio Moro não tem qualquer “permissão” para equivocar-se na interpretação de tal dispositivo.
Em verdade, a própria
intimação de Lula já foi algo de causar perplexidade, pois foi uma espécie de
espada no pescoço com os seguintes dizeres: ou te ajoelhas ou decepo sua
cabeça.
Ora, dizer que a
condução coercitiva deveria ser aplicada “somente”
no caso de recusa de Lula em acompanhar a Polícia Federal para prestar
esclarecimentos não justifica a situação fática ocorrida.
Para deixar ainda
mais claro o ocorrido, a Polícia Federal entregou a intimação a Lula para que este
prestasse esclarecimentos imediatamente em local determinado na intimação e
disse mais ou menos o seguinte: ou o senhor vai por bem, sem que seja
necessário utilizar a condução coercitiva; ou o senhor vai por mal, sob vara,
com condução coercitiva. Tudo no mesmo ato. Tudo, na minha opinião, sem amparo
legal, pois o texto do CPP é cristalino ao condicionar a condução coercitiva
somente “se o acusado não atender à
intimação para o interrogatório”, e isso não significa dizer que a
apresentação do intimado deva ser imediatamente.
Via de regra, as intimações
para comparecimento perante a autoridade policial costumam estabelecer alguns
dias de prazo ao intimado, embora o CPP não tenha previsão de tempo mínimo
entre a intimação e a apresentação. Contudo, no caso de Lula, a intimação determinou
o seu comparecimento de forma imediata à autoridade policial para prestar
esclarecimentos. Porém, no momento da intimação, lhe fora informado que, caso
não aceitasse comparecer espontaneamente, iria ser conduzido coercitivamente.
É inquestionável que
a liberdade de locomoção é violada com a condução coercitiva, uma vez que a
pessoa é capturada e levada sob custódia ao local determinado na intimação.
Não faz sentido
determinar a condução coercitiva para interrogatório, uma vez que a Lei Maior
(Constituição Federal, art. 5º, LXIII) garante o direito ao silêncio ao preso,
sem que isso lhe seja atribuído algum tipo de culpa, a saber:
Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
XIII
- o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado,
sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Da mesma forma é o
artigo 186 do CPP:
Art. 186. Depois de devidamente
qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o
interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em
confissão, não poderá ser
interpretado em prejuízo da defesa. (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003).
Conduzir um investigado
de forma coercitiva, para
interrogatório, me parece ser medida ilegal, tendo em vista nosso ordenamento
jurídico atual.
É verdade que a
liberdade de locomoção não é um direito absoluto. Nem mesmo o direito à vida é
absoluto (art. 5º, XLVII, “a”). Restrições pontuais à liberdade de locomoção
são aceitáveis, desde que ocorram dentro de uma razoabilidade e de forma
proporcional.
O juiz Sérgio Moro,
ao deferir o pedido de condução coercitiva, e posteriormente em entrevista a
Globo News, numa exclusiva que deu à jornalista Mirian Leitão, justificou a
medida dizendo que era no sentido de evitar tumultos entre correligionários do
ex-presidente Lula e aqueles que lhe são contrários politicamente. De qualquer
forma, a estratégia do douto juiz não surtiu efeito, tendo em vista o grande
tumulto que se formou no local do depoimento.
Ora, se a ideia de autorizar
a condução coercitiva era evitar o conflito entre os grupos, por qual motivo
não se combinou diretamente com a defesa do intimado a melhor estratégia para
se evitar o conflito? Lembrando que estamos falando de um ex-presidente que é
considerado um pré-candidato à presidência da República, está despontando entre
os favoritos nas principais pesquisas e que desperta paixões em milhões de
brasileiros, por isso o bom senso deveria prevalecer, não se configurando privilégios
a adoção de estratégias com a defesa de Lula a sua apresentação perante a autoridade
policial.
Defendo a tese que o
artigo 260 do CPP, que dá à autoridade o poder de mandar conduzir coercitivamente
o acusado (ou investigado) à sua presença para
ser interrogado, não foi recepcionado pela Constituição Federal de
1988, pois, sob o pretexto de subsidiar a investigação criminal, a condução
coercitiva restringe importantes direitos individuais, fortemente amparados pela
própria CF, entre eles o de não culpabilidade e o direito de locomoção. Além disso,
como já mencionado acima, se o investigado (ou acusado) tem o direito ao silêncio
garantido constitucionalmente, não faz sentido ter sua condução coercitiva decretada
para se apresentar à autoridade policial, se lá chegando o investigado poderá se manter em
silêncio e isso não será considerado em seu desfavor.
